e assim se passam as noites











|fotos: Carla Martins|




levo muito a sério a tradição. acho importante o património que se transmite oralmente. aquele que passa de geração em geração. há histórias que só podem ser contadas assim. há momentos que não seriam partilhados doutra forma. há ligações que não se criariam sem este olhos-nos-olhos. e este mosaico acaba por se tornar cultura. ou vai-se tornando cultura. 
o saber-fazer entra nestes recantos que se tornam cultura e que são passados em forma de lengalenga, repetida vezes sem fim (sim, a redundância é propositada). antes, o saber-fazer passava, também, pela necessidade. se havia fome, havia que cultivar a terra. se havia frio, tosquiava-se, fiava-se, tricotava-se. ou costuravam-se mantas de retalhos, desfaziam-se peças, criavam-se trapos ou novos momentos de aconchego e, quem sabe, vaidade. 
lembro-me de ver fazer e querer fazer. lembro-me de querer aprender. e de pedir. fui ensinada não só pela minha mãe, pelo meu pai, pelos meus avós mas também por quem fui encontrando pelo caminho. criar uma peça e poder usá-la é algo que não tem igual, é uma sensação quase impossível de descrever. 
se antes o saber-fazer passava, também, pela necessidade, hoje não é bem assim. é fácil entrar numa loja e comprar uma peça sem significado. ou com um significado que alguém lhe deu e que nós tomamos como nosso. ou que nem precisamos. ou que foi feita por alguém que é completamente explorado. ou que vai durar apenas metade duma estação porque na outra metade já há mais peças. uma roda viva que me põe, e sempre pôs, tonta. hoje, e cada vez mais, remendo, reutilizo, dou outra função. 
às vezes também crio do zero. menos do que gostaria, porque a vida nos exige, todos os dias, que sejamos tudo duma só vez. 
como o outono me trouxe a vontade de tricotar, os meses que passaram foram de intensa descoberta. e aprendizagem. sou persistente e obstinada e gosto de pesquisar. pergunto, procuro. recebo livros que me aguçam a curiosidade. compro livros que sei que só vou usar dali a uns tempos; e que já ofereci à minha mãe. e tenho frio. e gosto de mangas em tricot e de luvas sem dedos. 
isto tudo levou-me a uma técnica, para fazer mangas em tricot e luvas sem dedos, que implicava começar com uma corrente em crochet. hum, pensei, temos um problema! foram várias as tentativas mas, entre uma mãe destra e uma filha canhota, esta parte não passou! eu não sei fazer crochet!
não havia outra alternativa senão aprender, pensei de novo. e aprendi. e aprendi mesmo! com as duas mãos! lembrando-me dos movimentos da minha mãe, vendo as explicações e repetindo. com as duas mãos. uma vez com a esquerda e outra com a direita. uma vez com a esquerda e outra com a direita. até começar a pestanejar e esperar que o dia fosse outro para tentar outra vez.
os frutos estão à vista. estou contente. não está perfeito mas tem minutos e horas de trabalho, com dedicação.
não, estou mais do que contente! porque me sabe bem usar uma peça feita, aqui, do princípio ao fim. não vejo hora de completar a segunda manga, esticá-las até ao cotovelo (sim, são muito grandes!), sair à rua e usá-las até à exaustão!
e começar as próximas. mangas, luvas sem dedos e outros projectos que tais.


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